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Imprensa livre é pilar para proteger a democracia

Levantamento da Abraji aponta que agressões quadruplicaram no governo Bolsonaro, contribuindo para minar a confiança no jornalismo

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É estarrecedor o impacto que a atuação de Jair Bolsonaro (2019-2022) na Presidência do Brasil teve na liberdade de imprensa. Segundo o mais recente levantamento realizado pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), o número de ataques a veículos e jornalistas mais do que quadruplicou nesse período, passando de 130 para 557. O objetivo de desmoralizar o trabalho jornalístico era explícito: cada estocada de Bolsonaro funcionava como um aval para que autoridades públicas e seguidores fizessem o mesmo.

A mistura perversa de negacionismo com doses de desinformação transformou a imprensa em inimigo número um do poder. Atacar o mensageiro por não gostar da mensagem se tornou regra. Tanto que quase 42% dos ataques em 2022 tiveram envolvimento de algum integrante da família Bolsonaro, e 57% foram perpetrados por agentes estatais. A situação foi ainda mais grave para as mulheres jornalistas: em 2022, foram alvo de 145 ataques, somados aos ataques explícitos de gênero, um aumento de 13% em relação a 2021.

É PRECISO VIGIAR SEMPRE, E UMA IMPRENSA LIVRE, PLURAL E INDEPENDENTE TEM ESSE PAPEL

As eleições contribuíram para piorar o cenário da liberdade de imprensa no país. O monitoramento da Abraji aponta que houve 141 casos de ameaças e violência contra jornalistas que cobriam as eleições, a maioria atribuída a partidários de Bolsonaro. Houve um crescimento de 102,3% nos casos mais graves que incluem agressões físicas, ameaças e destruição de equipamentos. O ano de 2022 registrou dois assassinatos: o de Givanildo Oliveira, do site Pirambu News, de Fortaleza (CE), e o do britânico Dom Phillips, morto junto com o indigenista Bruno Pereira no Vale do Javari (AM).

O fato de a violência ter saltado da esfera digital para a física não surpreende, já que o combo política e mídias digitais vem se consolidando como uma combinação capaz de gerar um clima de insegurança para os profissionais de imprensa no Brasil. Quase dois terços (63,4%) dos alertas registrados pelo monitoramento da Abraji se originaram ou repercutiram na internet. Associado ao grande número de discursos estigmatizantes — proferidos para descredibilizar a mídia — e à intensa participação de agentes públicos nas agressões, esse dado aponta para campanhas sistemáticas de ataques a jornalistas nas redes sociais, iniciadas ou incentivadas por atores com alcance e influência no ambiente online.

O novo governo Lula traz uma abertura para a retomada da relação civilizada entre poder e imprensa, mas sabe-se que, para além de acenos de boa vontade, a construção dessa normalidade terá custos. A criação do Observatório Nacional da Violência contra o Jornalista, ligado ao Ministério da Justiça, é um passo importante nesse sentido. Além de combater os ataques a profissionais de imprensa, o objetivo do observatório é dar seguimento às investigações e buscar a punição de responsáveis, junto com as forças de segurança. Outra iniciativa salutar é a volta do Fórum Nacional do Poder Judiciário e Liberdade de Imprensa, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), anunciada pela presidente do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber.

Se por um lado há essa aparente boa vontade em relação ao trabalho da imprensa, por outro pairam ameaças à transparência, como a tentativa de decretar sigilo às visitas ao Palácio do Alvorada. Pressionado, o GSI (Gabinete de Segurança Instituciona) recuou da medida. Há também um tom, em algumas respostas governamentais a jornalistas, que escapa do trato desejado na relação entre poder e imprensa. Mais recentemente, ganhou repercussão mundial o caso da agressão sofrida por profissionais de imprensa durante a saída do presidente da Venezuela, Nicolas Maduro, do Itamaraty. O Estado tem o dever, em primeiro lugar, de não atacar.

A tentativa de golpe no dia 8 de janeiro, com a invasão das sedes dos Três Poderes, em Brasília, acendeu o alerta de que a democracia nunca está 100% garantida, ainda que as instituições estejam funcionando. É preciso vigiar sempre, e uma imprensa livre, plural e independente tem esse papel. É necessário ainda estar atento a ações com potencial desastroso, como a aprovação açodada de leis que coloquem em risco o livre exercício do jornalismo no país.

Em um ambiente fluido como o da comunicação digital do século 21, em que os receptores se transformaram em atores, e novos modelos de negócio destruíram os da mídia tradicional, como o jornalismo pode se manter relevante? Segundo o Barômetro da Confiança 2022, estudo global feito em 28 países, somente 47% dos brasileiros confiam na mídia, um ponto percentual a menos do que em 2021. Para 43%, a mídia é uma força desagregadora, só perdendo para o governo (59% o consideram assim). Na mesma pesquisa, 81% se dizem preocupados com as chamadas notícias falsas, e a maioria afirma que as fontes de notícias não conseguem resolver seu problema de confiabilidade.

Manter um veículo jornalístico é caro. Exige mão de obra qualificada e precisa contar com um modelo de negócios que garanta sustentabilidade e independência editorial. Em um país continental como o Brasil em que metade de seus 5.570 municípios são considerados desertos de notícias (não contam com nenhuma fonte de informação jornalística), como recuperar a credibilidade e a confiabilidade do jornalismo? Como fazer a sociedade compreender que sem liberdade de imprensa não há democracia? Não à toa, a primeira coisa que governos autocratas ao redor do mundo fazem é atacar a imprensa com o intuito de assumir o protagonismo da narrativa.

É necessário, portanto, criar um ecossistema saudável para o exercício jornalístico, garantindo segurança financeira e proteção a profissionais. Que os crimes contra jornalistas não fiquem impunes, que propostas legislativas para proteger o trabalho de jornalistas e comunicadores avancem, que as políticas de denúncia e mitigação das plataformas se adequem melhor às necessidades de profissionais de imprensa, que os veículos de comunicação apoiem colaboradores em caso de ataques e que existam políticas públicas e mecanismos de proteção de responsabilidade do poder público.

Cristina Zahar é jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade Michel de Montaigne (Bordeaux III), na França, e MBA em Gestão Empresarial pela FIA-USP. É atualmente secretária executiva da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo).

Leticia Kleim é advogada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e atualmente cursa graduação em Geografia também na USP. É assistente jurídica da Abraji coordenando o Programa de Proteção Legal para Jornalistas e os monitoramentos de ataques a jornalistas.

A Democracia que queremos é uma série de ensaios onde especialistas de diferentes áreas e de organizações que integram a coalizão Pacto pela Democracia apresentam reflexões e debatem os caminhos para a construção de uma sociedade mais democrática.

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